OS ÓRGÃOS ADMINISTRATIVOS TRIBUTÁRIOS DE JULGAMENTO E A FUNÇÃO JURISDICIONAL

É admitida no Brasil, desde longa data, a possibilidade de julgamentos em matéria tributária através da implantação de órgãos administrativos criados para esta finalidade.

De fato, a Constituição Federal de 1934 criou um tribunal especial para julgar recursos de atos e decisões proferidas pelo Executivo, ainda que não fosse afastada a competência do Judiciário.

Posteriormente, a Constituição Federal de 1937 estabeleceu, em  seu art. 203, a possibilidade da criação de “contenciosos administrativos, federais e estaduais, sem poder jurisdicional, para a decisão de questões fiscais e previdenciárias, inclusive relativas a acidente de trabalho.”.

Assim sendo, diante das permissões constitucionais supracitadas, foram regularmente criados órgãos administrativos de julgamento, entre os quais se destacam o Conselho de Contribuintes, o Conselho de Recursos da Previdência Social, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (em segunda instância), entre outros.

Vale dizer, outrossim, que a atual Constituição da República também faz expressa previsão ao contencioso administrativo através do inciso LV(1) de seu art. 5º.

No entanto, com a devida vênia aos entendimentos contrários, não cabe afirmar que a atividade desenvolvida pelos órgãos julgadores administrativos se trata de jurisdição.

Isso porque o Brasil não adota o sistema dual de jurisdição, clássico entre os países europeus como Itália e França. Este sistema, que institui uma verdadeira Justiça Administrativa, colocada ao lado da Justiça “comum” exercida pelo Judiciário, caracteriza-se pela existência de juízes e tribunais pertencentes a funções (2) diversas do Estado.

 

A respeito, elucida José dos Santos Carvalho Filho3:

O sistema do contencioso administrativo, também denominado de sistema de dualidade de jurisdição ou sistema francês, se caracteriza pelo fato de que, ao lado da Justiça do Poder Judiciário, o ordenamento contempla uma Justiça Administrativa. (…) Em ambas as Justiças, as decisões proferidas ganham o revestimento da res iudicata, de modo que a causa decidida numa delas não mais pode ser reapreciada pela outra. É desse aspecto que advém a denominação de sistema de dualidade de jurisdição: a jurisdição é dual na medida em que a função jurisdicional é exercida naturalmente por duas estruturas orgânicas independentes – a Justiça Judiciária e a Justiça Administrativa. A Justiça Administrativa tem jurisdição e competência sobre alguns litígios específicos. Nunca serão, todavia, litígios somente entre particulares; nos conflitos, uma das partes é necessariamente o Poder Público. Compete-lhe julgar causas que visem à invalidação e à interpretação de atos administrativos e aquelas em que o interessado requer a restauração da legalidade quando teve direito seu ofendido por conduta administrativa. Julga, ainda, os recursos administrativos de excesso ou desvio de poder. (Grifamos)

 

Tal forma de jurisdição (administrativa) deveras não existe no ordenamento jurídico brasileiro. Em que pese, como dito, ter sido admitida a criação de órgãos julgadores administrativos não se pode afirmar que se trata de uma justiça administrativa independente. O que há no Brasil é autêntica jurisdição una, o que significa que a função jurisdicional é monopolizada pelo Judiciário, através de seus juízes e tribunais, em caráter definitivo.

É o que se depreende, com clareza, da exegese do art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal de art. 5º:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (Grifos nossos)

Ora, não se pode conceber um órgão efetivamente jurisdicional que se sujeite à reapreciação de seus julgados por outro órgão (não há coisa julgada material em decisões administrativas proferidas em desfavor do contribuinte).

Nessa perspectiva, há de se ressaltar ainda a incompetência dos aludidos órgãos administrativos para a interpretação vinculante de normas jurídicas, assim como para a realização de controle de constitucionalidade (4), atividades estas reservadas aos magistrados integrantes do Judiciário.

Para além, as decisões nos procedimentos administrativos tributários são proferidas, total ou parcialmente, por membros do próprio Fisco, colocando em dúvida a garantia de imparcialidade nos julgamentos, o que não ocorre no âmbito judicial, haja vista que os interesses tanto da Administração Pública quanto do contribuinte ficam situados em plano de igualdade.

 

A propósito, Maria Sylvia Zanella Di Pietro assevera que (5):

O direito brasileiro adotou o sistema da jurisdição una, pelo qual o Poder Judiciário tem o monopólio da função jurisdicional, ou seja, do poder de apreciar, com força de coisa julgada, a lesão ou ameaça de lesão a direitos individuais e coletivos. Afastou, portanto, o sistema de dualidade de jurisdição em que, paralelamente ao Poder Judiciário, existem órgãos do Contencioso Administrativo que exercem, como aquele, função jurisdicional sobre lides de que a Administração Pública seja parte interessada.

 

No mesmo sentido, dispõe Ricardo Cunha Chimenti (6):

Conforme estabelece o inciso XXXV do art. 5º da Lei Maior, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. O Brasil, portanto, não adota o chamado contencioso administrativo, no qual um organismo administrativo desempenha funções jurisdicionais, prolatando decisões de conteúdo definitivo, sem fazer parte do Poder Judiciário. Os recursos administrativos hoje previstos são, pois, opcionais e não obrigatórios.

Pelo exposto, sem embargo que se reconheça o intuito de diminuir a participação do Estado-Administração em ações judiciais para discussão de questões tributárias através de um procedimento administrativo mais célere e menos dispendioso, conclui-se pela impossibilidade, no ordenamento jurídico pátrio, de a Administração Pública exercer, sob qualquer contexto, função jurisdicional.

 

 


 

 

1. LV — aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. (Grifamos)

2. Evitar-se-á, na redação do presente trabalho, a utilização da palavra “Poder”, a fim de se referir aos denominados “Poder Judiciário”, “Poder Executivo” e “Poder Legislativo”. Compartilhamos o posicionamento de abalizada doutrina, ainda minoritária, que defende a impossibilidade de fracionamento ou divisão do poder do Estado, em forma tripartida, comumente baseada em visão deturpada da teoria política concebida pelo francês Charles- Loius de Secondat Montesquieu. O que aqui se defende é a repartição de atividades e funções do Estado, não de seu poder. (Cf. DIAS, Ronaldo Bretas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito – 3º ed., rev. e ampl., Belo Horizonte: Del Rey, 2015. p. 9-17).

3. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24 ed. Rio de  Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. p. 931-932.

4. Súmula CARF 2: “O CARF não é competente para se pronunciar sobre a  inconstitucionalidade de lei tributária.”. O Supremo Tribunal Federal também já se pronunciou sobre a realização de controle de constitucionalidade por órgãos administrativos, em decisão prolatada pelo Ministro Celso de Mello no MS 32.865 MC: “D.2. Indevido exercício da atividade de controle de constitucionalidade e descumprimento do dever de zelar pelo cumprimento da LOMAN. Essa Suprema Corte, por diversas vezes, já declarou ser vedado ao CNJ o exercício de atividade de controle de constitucionalidade, por tratar-se o Conselho de órgão com natureza administrativa.” (Grifos nossos)

5. PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 26 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013. p. 816.

6 CHIMENTI, Ricardo Cunha. Direito tributário: com anotações sobre direito financeiro, direito orçamentário e lei de responsabilidade fiscal – 15.ed. – São Paulo: Saraiva, 2012. p. 338-339

 


 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 05 de outubro de 1988. Vademecum Saraiva. 20 ed. – São Paulo: Saraiva, 2015.

 

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.

 

CHIMENTI, Ricardo Cunha. Direito tributário: com anotações sobre direito financeiro, direito orçamentário e lei de responsabilidade fiscal – 15.ed. – São Paulo: Saraiva, 2012.

 

COSTA, Leonardo de Andrade. Processo Administrativo Tributário. Fundação Getúlio Vargas – Direito Rio. Rio de Janeiro: 2015. Disponível em:

<https://direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/files/u100/processo_administrativo

_tributario_2015-2.pdf> Acesso em: 11 de maio de 2017

 

 

DIAS, Ronaldo Bretas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito – 3º ed., rev. e ampl., Belo Horizonte: Del Rey, 2015.

 

PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 26 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013.

 

RANGEL, Tauã Lima Verdan. O sistema de jurisdição administrativa no Brasil: os desafios do procedimento administrativo à luz da tábua principiológica. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVII, n. 130, nov. 2014. Disponível em: <http://www.ambito- juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=15418>. Acesso em 11 de maio 2017.

 

 

 

Por Fernanda Jacob Martins

Advogada associada na unidade de Belo Horizonte, MG

 

 

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